Um único ser humano (Lúcia Helena) No meu livro predileto, o épico indiano Ramayana, quando a história se aproxima do seu fim, Narada é avisado do abandono de Sita, a protagonista da história, e parte para despertar o sábio Valmiki, para que intercedesse por ela. O dito sábio havia se desiludido com a humanidade e entrado em meditação profunda por anos sem fim, a tal ponto que um enorme cupinzeiro se havia formado sobre seu corpo imóvel. Narada chega e grita: “- Sai daí!”. E ouve como resposta a voz rouca de Valmiki: “- Diga-me o nome de um único ser humano de valor, e eu sairei daqui!”, ao que Narada responde com um grito, a plenos pulmões: “- Rama!”. O enorme cupinzeiro começa a rachar e cair aos pedaços e Vamiki se coloca de pé, com ar curioso e indagativo: “- Quem é Rama?” Imaginem vocês o que seria de nós se alguém tivesse que gritar o nome de um ser humano vivo para que a sabedoria se levantasse e viesse em nosso auxílio e resgate, agora: qual nome? Sei que Valmiki é um sábio e não um louco a ponto de achar que homens do nível de Rama andam por aí com tanta facilidade, mas penso que se conformaria, dadas as condições atuais, com um “João da Silva” sensato, lúcido e solidário. Neste duro momento em que vivemos, através da nossa única janela de comunicação, proliferam mensagens fake e mensagens não fake, mas que “chovem no molhado” (coisas que você precisa saber sobre o coronavírus: nada além do lavar as mãos, do álcool gel e ficar em casa), declarações melodramáticas de médicos contando o que ocorre em hospitais e contaminados de zonas de risco desabafando sobre o que vivem... Será que não dá para saber que as pessoas estão apavoradas, sem conseguir dormir em suas casas? Ah, mas há pessoas ainda nas ruas... As que estão nas ruas, evidentemente, não estão ouvindo isso, mas as que estão em casa! Tem gente abandonando seus animais de estimação, seres vivos dotados de sentimentos, condenados à morte por um estúpido “ouvi dizer...”, falso e cruel. Tem gente dispensando suas diaristas sem lhes dar nada... Nestes dias, recebemos um pedido desesperado de ajuda de uma delas, pois estava dentro de casa com seus três filhos sem ter o que comer! “– Ah, isso é problema do governo!” Também não tolero esta balela! Pode chegar a hora em que pessoas desesperadas, sem terem a quem recorrer, saiam às ruas roubando, quebrando casas e estabelecimentos, pois ninguém se deixa morrer passivamente... E aí, será problema seu? Não falta quem publique mensagens de ódio, teorias da conspiração, dando voz àquilo que, parodiando Drummond, eu chamaria de “O hábito de odiar, que tanto nos diverte...” Definitivamente, não sabemos viver sem demônios. O vírus (um dos muitos vírus perigosos que enfrentamos ao longo da história da humanidade, diga-se de passagem) foi fabricado ou ocultado dentro de escritórios sombrios de nações maldosas, talvez assessoradas por extraterrestres pérfidos, que planejavam destruir quase toda a humanidade. Será que a nossa hi-tech civilização está em plena idade média novamente e eu não me apercebi disso? Não falta o áudio de uma desesperada italiana, que, após cantar todos os imensos méritos civilizatórios da Itália, sai ofendendo e prometendo vingança a um monte de países do Ocidente que, supostamente, não ajudaram, quando, obviamente, nenhum deles sabia nem como ajudar a si mesmos, vítimas da mesma perplexidade e do mesmo medo. Em suma, o texto já vai longo, e corro o risco de que ninguém o leia. Meu desafio é: seja o “João da Silva”. Sóbrio, vivendo um dia de cada vez, sem pânico e sem egoísmos. Sem dar gramofones a insanidades. Sem poluir ainda mais o meio. Se não tem nada sadio e inteligente a dizer, meu conselho é que fique quieto e faça as coisas simples que te competem, sem agonias ou histerias. Valmiki anda procurando por esse homem: que tal criá-lo? Corpos separados, corações unidos, mais unidos que nunca!